Re: Travessia do Dragão (versão integral 2008)
Certo dia, é para ir. Acabo o trabalho, lancho rapidamente, vou para casa, pego na mochila, ponho a bicicleta em cima do carro, fecho portas, janelas, persianas, a água, vou buscar o Rui, vou buscar o meu irmão, viajo para Melgaço, dou entrada na pensão, janto tarde, vou para a cama, adormeço.
Acordo com o despertador do telemóvel e não sei onde estou. Passam-se uns segundos e, ainda às escuras, realizo que este é o primeiro minuto de uma vida de quatro dias que nada tem a ver com aquela que deixei para trás. Durante quatro dias tudo o que tenho é o conteúdo de uma pequena mochila, uma bicicleta e a companhia do Rui. É como se tivesse sido lançado por uma catapulta para um universo paralelo, despojado de quase tudo.
Assim que atingimos o primeiro topo da Peneda e pus a vista naquele horizonte imenso senti o poder do Dragão, o ser que dorme estendido entre Melgaço e Bragança, belo e selvagem. Na pele rugosa e granítica das costas do Dragão escorre a água mais pura que o céu dá, vivem homens, plantas e animais em harmonia e crescem as mais simples e belas flores que exalam um caleidoscópio intoxicante de perfumes. Há recantos bucólicos e paisagens majestosas, vento agreste e brisas delicadas, sol brilhante e nuvens negras. As partes que dão forma ao Dragão chamam-se Peneda, Amarela, Gerês, Cabreira, Barroso, Leiranco, Brunheiro e Montesinho.
Ciclar o Dragão autonomamente em quatro dias é também percorrer um universo interior onde se pode encontrar o limite do sofrimento e o medo da derrota, mas também o êxtase da conquista e a euforia da superação. É um exercício de poder da mente sobre o corpo e da mente sobre ela própria, procurando razões de ser numa luta interior, procurando sinais de alívio e regozijo numa paisagem que tem tanto de impiedosa como de sedutora.
Quem faz BTT sabe do que estou a falar.
Na noite anterior à partida, em Melgaço. Sentimentos díspares marcavam-me a expressão.
Primeiro dia, primeira manhã, primeira hora. Só o nevoeiro nos perseguia na Peneda.
No Soajo deparamo-nos com estas estranhas criaturas de oito pernas, petrificadas há séculos, ansiando por um devir fértil que lhes encha as entranhas e lhes dê vida.
Perto de Paradamonte o Lima estava tão cheio que parecia convexo como a pele de uma cobra.
Segundo dia, Miradouro da Pedra Bela, no Gerês. Albufeira da Caniçada ao fundo e em primeiro plano a boa disposição de quem se encontra entre dois desesperos.
Os maravilhosos caminhos de Curral dos Portos, serra do Gerês. Esperem elfos e duendes por trás de cada carvalho.
Barragem de Salamonde. É quase do tamanho do Rui.
Em Salamonde, no meio da segunda etapa, a Suiça era um país muito longínquo, noutro planeta, noutro universo, onde as pessoas jogam à bola tentando enfiá-la na baliza dos outros. Os nossos problemas no país do BTT eram de outra ordem, tinhamos a mafarrica "Vaca" pela frente e isso notava-se nas expressões.
Vencida a "Vaca" e o "Talefe" eis o momento de glória, no topo da Cabreira, ou do mundo, já agora! Daqui era só descer até ao banho/jantar/cama no Salto. Os deuses não ficaram assim muito satisfeitos com a nossa irreverência e debitavam megawatts de ventania gelada para nos arrefecer o ânimo, mas sem sucesso. O dia estava ganho.
Os agradáveis caminhos da Cabreira, ao longo do vale da Ribeira de Lamas de Miro, a "Escócia da Cabreira", como nós lhe chamamos.
Desta vez resolvi tirar uma foto com um nosso velho amigo que toma conta da Cabreira sem nunca pregar olho, é o "Índio". Não, não é o nosso Indy, betetista e cronista "extraordinaire", esse só lá vai de vez em quando. O "Índio" e outros símbolos esculpidos no granito (vidé supra crónica do Lobo Solitário) encarnam o espírito místico da encosta Este da Cabreira.
Terceiro dia. Novo dia, novas montanhas para percorrer no dorso do Dragão. Eis os divertidos caminhos do Barroso.
Aldeia no Barroso. A água é tão límpida que hipnotiza quem a observa durante muito tempo. Os barrosões já viram naquela água coisas com que nós nem sonhamos.
Coimbró, aldeia típica do Barroso.
No topo do Barroso. Ao Norte, a serra do Larouco, uma asa do Dragão que não visitamos nesta viagem. O plano azul é a descomunal reserva de água da barragem dos Pisões. Em primeiro plano, a Titânia Carina (esquerda) e a Titânia Vanessa (direita).
Alturas do Barroso. Este senhor aproxima-se e diz:
"Uma, uma meteu-se com um filho da polícia, um rapaz ... e eu digo-lhe, "Ó rapariga, anda cá, anda cá ...", pus-lhe aqui as mãos assim à gola e digo "Anda cá tu. Ouve lá, qu'é que foste fazer? Que andaste a fazer?", e estava a mãe à espera, e comeu da mãe e eu disse "Ó rapariga do car@1#o, tu dá-lhes respeito, lembra-te que são tuas filhas, são minhas filhas, são tuas ..."
Etc, etc, etc. Enquanto eu ouvia a história um pouco incoerente do ancião de Alturas do Barroso o Rui preocupava-se em encontrar alguém que nos arranjasse de comer.
E não é que encontrou? Eu, fiel aos meus princípios, num primeiro momento repudiei a própria ideia de comer algo que não fosse uma sande rançosa que transportasse comigo há pelo menos dois dias, mas os senhores foram tão simpáticos que ... bem, não os quis desiludir ... é isso.
Ainda revoltado por não ter dito que não a uma bela refeição barrosã regada com um tinto da zona (hehehe) planava junto às searas que bordejavam a albufeira dos Pisões, a transbordar. Na verdade transbordavamos os três, eu o Rui e a barragem.
A giesta amarela, o arbusto mais bem sucedido pelas paragens do Dragão. Na subida para o Leiranco, o obstáculo entreposto entre o Barroso e a cidade de Chaves, a giesta saturava o ar com o seu perfume agridoce.
Finalmente o Leiranco vencido, Chaves à vista. Enquanto eu me deitei a descansar e a ouvir uns passarinhos invisíveis lá em cima na atmosfera, o Rui estava irrequieto, andando de um lado para o outro. Na verdade o silêncio no topo do Leiranco era um pouco fora do normal, estava um ambiente soturno ...
... trevas aproximavam-se de Sudoeste, sentia-se a electricidade no ar ...
... corria uma brisa fraca, abafada. Tudo isto deve ter transtornado o Rui a propôr uma alternativa ao caminho que ambos sabíamos ser o único. Meteu-nos num "no-track" enlameado e escorregadio e fez-me molhar os pés. Por fim atingimos o nosso caminho e atiramo-nos pelas maravilhosas trialeiras que descem o Leiranco. Já lá em baixo ele não me conseguiu explicar que espírito o possuiu no topo do Leiranco.
Quarto dia, alma lavada, cabeça fresca, barba crescida (considerei transportar utensílios de barbear supérfluo). A meio da vertente Oeste do Brunheiro a vista para o vale de Chaves é fantástica. Este ía ser um dos dias mais compridos da minha vida de BTT.
No planalto transmontano as searas são comuns.
O vale do Mente. Quem quer atravessar de Chaves a Bragança tem que transpôr pelo menos quatro grandes vales: Mente, Rabaçal, Tuela e Baceiro. Foi ... duro.
Caminhos como este inspiravam-nos. Autênticas delícias. Carvalhos e castanheiros. A chuva já pesava.
No Montesinho as estevas fizeram a sua aparição. Apesar de fisicamente subjugadas pelas giestas lançavam o seu aroma estival sem restrições, aumentado pela humidade da chuva.
"Many rivers to cross
But I can`t seem to find my way over
Wandering I am lost as I travel along
The white cliffs of Dover
Many rivers to cross and it`s only my will
That keeps me alive
I`ve been licked, washed up for years and
I merely survive because of my pride."
Jimmy Cliff
Planalto de Mofreita, Montesinho. Searas e papoilas. Custa a crer que ciclamos em plano a quase 1000 metros de altitude.
Mais um símbolo de religiosidade. "Valha-nos Santa Ingrácia de Mofreita."
Santa rusticamente esculpida em granito, aldeia de Zeive. O seu sorriso zombeteiro parecia dizer: "Com que então pensavas que chegar até aqui era fácil, hem?". Para cúmulo ainda fui perseguido por um cão durante quilómetros, aparecendo atrás de mim de vez em quando. Algo ou alguém não me queria por aquelas paragens.
Os últimos 20 km dos 118 km da etapa foram feitos debaixo de chuva entre soutos. O cansaço era imenso mas o ar fresco e perfumado e a luz suave apaziguavam-me o espírito e continuava a pedalar como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.
O aspecto da Titânia Carina no fim da viagem condizia com o meu estado físico: SUPER-EMPENADO.
Adeus Dragão, já estou com saudades, até à próxima.