O primeiro de Maio é um dia para os trabalhadores reunirem, reivindicarem, manifestarem, lutarem, negociarem, celebrarem e... não trabalharem. Como bom trabalhador, reuni as minhas coisas, reivindiquei o direito a tirar o dia todo de folga, manifestei que chegaria tarde e más horas, lutei horas a fio contra o track de GPS, negociei zonas mais técnicas, celebrei com uma coca-cola e um pacote de batatas fritas e... dei à perna que me fartei. O objectivo era repetir um passeio nascido uma noite, após um bom jantar regado por uns valentes canecos, confeccionado em frente ao ecrã do PC na companhia do JAP. Ao computador, foi muito fácil. No dia seguinte, acabei por fazer a primeira tentativa por terras do Larouco a solo dado o meu companheiro ter arranjado alguma desculpa esfarrapada. Por engano, tomei o sentido "errado" e apanhei um grande empeno. Aconteceu isto há cerca de quatro anos atrás. Voltámos lá mais duas vezes, melhorando as coisas ligeiramente. Há cerca de três anos, no entanto, que lá não ia. Queria voltar a experimentar um dos passeios mais bonitos e exigentes que alguma vez tínhamos desenhado. Avançou o Sindicato dos Solitários.
A partida dá-se junto à estrada que sai da N103 em direcção a Viade de Baixo e Viade de Cima. O granito devoto protege estas terras há anos.
Conforme se sobe, avista-se a albufeira de Pisões e, por trás, o maciço do Barroso. O dia começava cinzento, com alguns salpicos de chuva, mas a meteorologia prometia uma melhoria ao longo do dia. Tinha fé nos técnicos do IST.
A subida inicial é curta e leva-nos à cumeada que segue a margem da barragem. Nestes dois últimos anos proliferaram torres eólicas como cogumelos nascidos em noite de Outono. No outro vale, do outro lado, corre o Cávado. Na descida olhei intrigado para os carvalhos vestidos de pijama. Nunca tinha visto tanto líquen. Dizem que atestam pela pureza da atmosfera.
A senhora dizia-me que estava em Cambezes. Cambezes do Rio, como se lê nas cartas militares.
Seguia calmamente, apreciando devidamente a paisagem e congratulando-me pelo sossego: um contraste com o fim de semana anterior! Um tractor carregado de estrume bloqueava a via pública. O homem da forquilha mandava-me ir à volta. Desemboquei no largo da igreja, com o seu relógio parado. Reconheci uma casa coberta de colmo que tinha visto há uns anos atrás sendo reparada. Pesquei a foto de 2007:
Não dura muito, este tipo de construção. O aspecto actual não era melhor que as artroses da anciã que por lá passava.
Saí da aldeia, em asfalto, e dirigi-me ao fundo do vale, antecipando os interessantes caminhos de que me lembrava das outras incursões. Passei por um ferro velho com este belo veículo. Não sou expert. Alguém que faça as devidas apresentações...
O caminho descia até ao ribeiro que deveria ser atravessado sobre as pedras conhecidas como poldras. Eis a passagem em 2007:
Quando parei junto ao curso de água fiquei apreensivo. O volume da corrente era muitíssimo superior ao que encontrara nas outras passeatas. Mesmo que me dispusesse a molhar os pés, a água que passava por cima das pedras e os biofilmes limosos que as deveriam cobrir fizeram-me imaginar um belo mergulho, agarrado desesperadamente à Vanessa. Voltei para trás.
Por várias vezes tentei encontrar maneira de passar o ribeiro. Debalde. Esperançado, ainda consultei umas tabuletas mas a riqueza informativa da sinalética não ajudou.
Só me restou usar o asfalto que une Montalegre a Tourém. Mais à frente, de facto, havia ponte. Que belo local!
Só nessa altura me dei conta que o contrariante "ribeiro" era o rio Cávado, ainda infanto-juvenil. Lá ao longe, as fortificações centenárias de Montalegre vigiavam a minha incursão por estas bandas.
Com o desvio forçado, perdi as trialeiras que tanto desejava fazer. Um escaravelho seguia o seu caminho sem querer saber das minhas desventuras. Haveria, mais à frente, de encontrar uns familiares...
Fui dar a Donões para iniciar a subida à segunda série de montes, estes mais ermos e desprovidos de torres eólicas. O pico tem uma designação sugestiva: Atalaia. Havia que estar atento. Neste ponto está-se muito próximo da fronteira com Espanha.
Desci para Padroso e Padornelos. No meio cumprimentei novamente o Cávado. Nova tentativa frustrada de cumprir o track. O caminho estava tapado e a alternativa de subir umas dezenas de metros por um prado de lima não me convenceu. Novamente, havia muita água. Assim, dei a volta, por Padornelos.
Comecei, então, a ascensão ao Larouco. Antes de iniciar a subida final, um desnível de quase 300m, meti combustível. Ao meu lado, outros colegas labutavam na sua conquista de alimento. Confesso que não é o meu menú de eleição mas invejo-lhes a gula...
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Outros colegas, deslocando-se rapidamente, dificultam o trabalho da focagem automática. Eis o que de melhor se conseguiu.
Lá subi ao topo ventoso onde, desta vez, não resisti à composição mais cobiçada deste Forum: aqui são 1527m, o terceiro pico português (continental), logo a seguir à Estrela e Gerês.
Lá em cima, o artista Eos esculpia a seu bel-prazer.
A escolha dos trajectos, feita com as várias visitas, fez a selecção: subir pelo estradão, descer pelo caminho desfeito. A paisagem, essa, nada tinha para desfear.
Essa descida, alucinante, levou-me a Gralhas onde reabasteci num pequeno café. Esta aldeia tem muito que oferecer em termos culturais. Hei de lá voltar para uma visita mais cuidada: cidade romana de Grou, fornos comunitários, igreja paroquial antecedente do século XVI...
O regresso começava com uma série de subidas difíceis mas tecnicamente interessantes. Começava. Passado. Há três anos atrás. Saía-se de Gralhas e entrava-se em terra. Mais à frente, o trilho cruzava outro ribeiro. Não, este não era o Cávado. Trata-se, de acordo com consulta posterior, do ribeiro de Meixedo.
Para trás deixava o Larouco.
A encosta que me esperava chama-se Encosta do Pai Martins. A tal do desafio técnico. Infelizmente, estes dois anos assistiram a uma delapidação total dos pisos. Havia que empurrar a máquina à mão. Comecei a ficar preocupado quando vi as giestas a invadirem o caminho. Teimoso, continuei. Mais à frente era a carqueja que me lambia as canelas. Carqueja, urze, tudo crescia no antigo trilho.
Foram muitas centenas de metros a lutar contra a vegetação. Lembrava-me de outras situações. Não foi tão dramático como no trilho do Diácono nem tive carqueja tão alta como no trilho dos Incas. No entanto, não foi agradável. Foi assim até ao topo onde já consegui rolar. E gostei. No entanto, os caminhos que se seguiram continuaram difíceis, apesar de cicláveis. As cores eram bonitas...
A dada altura dei conta que me afastava do track. Nem me preocupei. Dali para a frente faria navegação à vista. Estava farto da falta de manutenção dos "meus" trilhos. Que falta de educação. Anda um tipo a desenhar um trajecto de BTT e o pessoal da terra não mantém os caminhos limpos? Mas que pouca-vergonha é esta???
Fui dar a Codeçoso. Apanhei, então, uma série de estradões que regressam pela encosta, quase na sua cumeada. Um dos locais tem o santuário da Senhora das Treburas. Ignoro o que o nome de família desta senhora quer dizer!
Logo a seguir, passei por um desses sistemas de aniquilação de solitários.
Esta deverá ter sido a visão nos últimos segundos na vida de muitos Canis lupus.
Antes de descer para junto da viatura, ainda admirei uma última vez, os Pisões.
O dia tinha sido longo. Não tinha corrido como esperado. Mas também, qual o trabalhador que tem a sua carreira da feição que deseja? O ordenado sempre a subir? A reforma garantida aos 53? o AVC do palerma que passou à frente por dar graxa ao chefe? o esticar de pernil deste último? Enfim, no próximo ano haverá outro primeiro de Maio. Espero poder reivindicar outros 80Km. Talvez mantenha um acumulado de dúvidas de 2150 m.