Não, não é engano.
Quando eu era puto, a Laranjina C era uma das bebidas que a malta mais consumia. Tinha uma garrafa espectacular, um prodígio de design, mais a mais tendo em conta que estávamos nos anos 60 (do sec.XX, pois…). Continua, ainda hoje, a ser uma referência para o pessoal mais entradote. Nesses “gloriosos” tempos, a rapaziada imberbe na fase que podemos designar por “ pré-cerveja”, se quisesse beber uma Coca-Cola tinha que ir a Espanha. Ah pois, cá era proibida! Sumol, vá lá que não vá. Canada Dry lá aparecia nos sítios mais “selectos”, mas a Laranjina era um “must”. Um dos nossos pequenos prazeres. Como as pastilhas Pirata, ou os livros da Colecção Falcão…
Outro dos nossos prazeres (e aqui entramos nos finalmentes… 8)) era andar de bicicleta.
Computadores não havia, televisão só à noite, não me lembro se 1 se 2 canais. Ou seja, muito tempo para as Biclas. E nessa altura tínhamos: 1) as bicicletas de corrida e 2) as pasteleiras. Só.
As primeiras tinham mudanças (2x5) com selectores não indexados (isso é uma modernice…) no tubo diagonal, tinham cabos para as mudanças e travões e aqueles guiadores retorcidos que muita confusão nos faziam a nós, putos. Mas curtíamos ver a Volta, o Agostinho, o João Roque, o Firmino, etc. Eu adorava ver as passagens na estrada, a etapa de pista em Tavira ou a chegada espectacular ao velódromo do Estádio Alvalade (acreditem ! existiu mesmo!). Íamos para lá com um rádio a pilhas para, enquanto esperávamos pelos ciclistas, ouvirmos o relato do Artur Agostinho. E havia grande excitação quando ele dizia : “ …. e finalmente, Joaquim Agostinho enceta uma fuga no início da subida da Calçada de Carriche, aí vai ele…”. Espectacular. Lembro-me como se fosse hoje. Eu fazia até uma lista com as classificações e somava os tempos e tudo, no final de cada etapa. “A Bola” nessa altura só saía três vezes por semana, e chegava a Évora (onde eu vivia) no dia seguinte….tínhamos que ser quase auto-suficientes em matéria de informação.
As outras bicicletas que se vendiam na altura, tinham luzes alimentadas por dínamo, guarda-lamas, suportes para bagagem, travões de alavanca em metal, e não tinham mudanças! (Finalmente o gajo está a chegar ao assunto, pensarão aliviados os mais impacientes). Sabem aquelas Yé-Yé que ainda se vendem actualmente? Eram assim. Claro que havia algumas, um amigo meu mais endinheirado tinha uma, com três mudanças no cubo. Mas eram raridades e normalmente os seus utilizadores eram dados ao “tunning” da época : fitinhas a pender dos punhos, autocolantes com pin-up girls, buzinas tipo “pêra”, autocolantes com sentido proibido no guarda-lamas traseiro, retrovisores, etc. Foleirices, dizíamos nós. Pronto, mas realmente as mais vistas eram, desculpem o termo, que não sei se conhecem, single speed bikes, eheheheheheh.
Eu também tinha uma, claro. E, por acaso, era um bocado exclusiva (não, não era uma Paduano). Tratava-se de um quadro de corrida, que o meu pai comprou em segunda mão e mandou pintar, para me oferecer. Verde e com umas bandas autocolantes tipo bandeira de meta aos quadradinhos pretos e brancos. Ficou sem mudanças e sem aquele guiador maluco, mas tinha grandes vantagens em relação às dos meus amigos : não tinha guarda lamas (que eles também acabavam por retirar das suas), o quadro era mais fino e leve, e tinha travões accionados por cabo. Por sinal, era quase uma antecipação das modernas 29ers, pois usava rodas 700 com pneus mais largos que os de corrida e com rasto. Uma bomba! Pena aquela obrigatória chapa de matrícula em latão no eixo da roda frente com o brazão da Câmara. Antes ainda de outra modernice : as famosas chapas amarelas com as iniciais do concelho.
Foi nela que eu comecei a fazer BTT, decorreria o ano de 1966 ou 1967. Sim: BTT ! Não lhe chamávamos isso, mas já era. Eu e os meus amigos saíamos mais vezes para o campo, do que para andar na cidade. Voltas até ao Xarrama ou até ao Degebe (rios perto de Évora) ou até Machede ou à Carreira de Tiro , com regresso pela Ladeira da Boa Morte. Ou, no verão, para as Piscinas recém inauguradas, com passagem pelos magníficos trilhos do Alto de S.Bento e dos Salesianos. Horas e horas longe de casa , e sem telemóveis, imaginem. Também não havia barras energéticas, mas passávamos em muitas quintas com árvores de fruto à mão de semear (oops….jovens, não façam isso, sejam auto-suficientes!). Desde um desses dias para cá, nunca mais comi ameixas: não sei se me faço entender….De vez em quando lá estragávamos o material e tínhamos de nos socorrer da ajuda das duas únicas oficinas de bicicletas (e motas) que havia na altura (Cágado e Manel da Gaita). Entretanto, enquanto não havia massa para pagar os calços, íamos travando com a sola das Sanjo no pneu. Que remédio…
Bom, esta foi a minha primeira, longínqua mas saudosa, aventura em single speed.
O bichinho das bicicletas ficou, e depois disso já tive várias outras bicicletas, de estrada ou montanha, mas todas apetrechadas com sistemas mecânicos de desmultiplicação de andamentos. Toda a gente sabe que me refiro às mudanças, mas chamemos-lhe aqueles palavrões todos, para dar um ar propositadamente diminuidor…há por aqui alguns fundamentalistas, e eu quero ficar bem visto nesta singular comunidade.
Pretendo agora apresentar-vos a minha segunda bicicleta sem mudanças, ou single speed, como queiram. Foi para isso que criei este tópico.
O paleio anterior foi surgindo ao correr do teclado, porque, no fundo, o que eu espero desta nova bicicleta é o reviver de algumas das sensações desses velhos tempos. Ilusão de cota, provavelmente. Mas também pode ser que não. Veremos. Ameixas é que não, obrigado!
A história da Laranjina tem a ver com a côr da bicicleta, com estas memórias e com aquele hábito bem português de pôr “alcunhas”. Laranjina, não “C”, mas sim “S”, de single, speed, singular, simples.
Laranjina S
A ideia já vinha de há alguns tempos. Há até por aí um tópico antigo em que apresento outra das minhas bicicletas, onde levanto a lebre. Porque, como escrevi nesse tópico, eu gosto mesmo é de ANDAR DE BICICLETA, seja no campo ou na estrada, com ou sem mudanças ou suspensão, sobre aço, titânio, carbono ou seja o que fôr. Com amigos, de preferência. Pronto, já perdi os créditos acima ganhos junto dos fundamentalistas.
O que despoletou o processo de montagem do dito tubular engonço, bicicleta para vocês, foi o interesse que surgiu no meu grupo habitual de companheiros de pedalada. Alguns, que nos acompanham de vez em quando, já tinham SS e recentemente o Pedro Mateus também montou uma para ele (Surly 1x1). Linda, por sinal. Pode ser que um dia ele me autorize a colocar aqui umas fotos…. O Marco também tem uma Genesis nova, além da já conhecida “Green Hammer” (mostra aí ao pessoal, meu!) e o Pedro Ferreira está a começar o processo com uma velha GT. Quatro pedrAmarelas sem mudanças, para já…..
Acontece que estava há muito tempo parada, lá para os fundos da arrecadação, uma bicicleta que começou por ser da minha mulher e que depois foi utilizada pela minha filha e que eu por vezes também usei, quando tinha a minha no estaleiro.
A "base"
Wheeler 2800, com quadro e forqueta em liga de aço e cromo-molibdénio (vulgo cromoly) comprada em 1996 na saudosa loja Super Radical do Cacém, que era propriedade do actual seleccionador nacional de BTT, Paulo Pais (grande abraço para ele, se estiver a ler isto). Nessa altura o alumínio quase só servia para fazer latas de refrigerantes e marquises, as suspensões eram um luxo recente e travões de disco só nas motos… Apesar da idade, a bicicleta tem poucos quilómetros, ainda com os pneus, a transmissão e os cantilevers originais (também ainda não tinham inventado os v-brakes).
Foi, portanto, a partir desta base que a coisa se fez.
Com grande ajuda e aconselhamento técnico dos amigos Jepas, Pedro Mateus e João Andrade. Abraço também para eles.
Despida a donzela, partiu para maquilhagem, ali para os lados do Cabeço de Montachique. Lousa. Salão de Beleza da Masil, claro. Quem sabe, sabe.
Veio de lá como nova. Depois foi montar o músculo em cima daquele esqueleto alaranjado. Substituimos quase todo o material, por diversos motivos. O Pedaleiro original era de peça única, pelo que me socorri de um Alivio que o Jepas tinha há uns tempos e que nunca fôra usado. Desmontou-se, para aproveitar o prato 32 e os cranques.
Jepas no seu retiro zen, nirvanando com a laranjina S
As rodas e os travões foram substituídos por material mais resistente, para aguentar as cargas a que uma bicicleta deste tipo está sujeita. O avanço e a caixa de direcção mantiveram-se (1’’) e o guiador foi substituído por um sobre-elevado e mais largo, pelas razões anteriormente apontadas. Mantive também o espigão de selim e estou para já a utilizar um velhinho selim Selle Itália que já aguentou muitas horas com o meu peso, em várias bicicletas. Enquanto durar, fica. O kit single speed veio do Charlie The Bike Monger. Grande castiço, além do mais….
Vejamos então as especificações da Laranjina S:
Quadro : Wheeler 2800 cr-mo tamanho 16 (1996) – 2530g
Forqueta : Wheeler cr-mo – 903g
Caixa direcção : rosca, 1 polegada, sem marca
Avanço : Wheeler Ultrax
Guiador : Decathlon, sobre-elevado, 64mm
Punhos : Decathlon
Manetes de Travão: Avid SD7
Travões : Avid SD7 v-brake
Cabos e Bichas : Jagwire
Selim : Selle Itália Max Flite, TransAm Gel Flow, carris em cr-mo
Espigão de selim : Wheeler
Roda dianteira : Ritchey Rock Pro, cubo Scott
Roda Traseira : Mavic XM317, cubo Shimano XT
Pneus (fr e tr) : IRC Mythos 2.10
Câmaras de ar : Decathlon com líquido, válvula schrader
Pedaleiro : Shimano Alivio 32d, cranques Alivio, eixo Shimano JIS UN26 “quadrado”
Pedais : Shimano SPD 520
Corrente: KMC 3/32
Carreto : Gusset 18d
Espaçadores : Gusset
Esticador : 4jeri
Peso Total: 11,6 kg
Produto terminado, ainda nas instalações da Yellowstone Excelence Manufacturers (YEM)
Controlo de qualidade nos laboratórios do Dr. Peter Mathews (PM)
Provas exaustivas em Tercena Valley
auditoria técnica (não diurética…) e segurança das instalações YEM por Simba, o gato caninomórfico do Dr. PM
E, para já, é tudo. Eu, pelo menos, já me ri aqui um bocado sózinho.
Desculpem lá, mas agora vou ali dar uma voltinha com ela. Ou então não; vou antes beber uma cervejola (“more beers than gears”, como diz o Charlie). :twisted:
Depois conto.
Boas pedaladas (dessas e das outras)!