lobo solitario
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Seria outro Sábado azul mas frio. Resolvi aceitar o repto. O anúncio explicava que se tratava de uma tradição: a última volta do ano. Tratar-se-ia de atravessar o Alvão e ir à Senhora da Graça, esse monte emblemático para quem segue as lides ciclísticas. Coisa para se sair às 9h e chegar às 16h. Tentado, lá me ofereci a ir atrasar os exércitos de D. Vítor, conde de Xudreiros e seus escudeiros do condado de Tourencius dos Xudreiros.
Para o atraso não ser ainda mais inflaccionado com uma chegada tardia, levantei-me às 6h para ter tempo de sobra de chegar a horas ao Castelo de Tourencinho. Tinha medo de estradas geladas e queria seguir viagem lentinho.
Com vinte minutos de avanço, equipei-me cuidadosamente, prestando especial cuidado às extremidades inferiores que revesti de dois pares de meias e umas polainas sobre o calçado. O frio era imenso.
O sino da igreja mais próxima bateu as nove e não havia sinais do exército de conde D. Vítor. Onde estariam esses valorosos guerreiros transmontanos? Padecentes de alguma virose ou ressaca natalícia? Ou seriam ciosas consortes que os segurariam no morno dos leitos? A esta altura começo a ouvir aquelas vozes vindas das profundezas límbicas que nos aconselham a todos nós. Uns chamam-lhes a Voz da Razão e a Voz da Tentação, ou o Diabo e o Anjo, ou, inspirados pelo Sigismundo, o Ego, o Id, o Alter -Ego, o Egozinho, e outras patetices. Vou-lhes chamar o Pai Natal e Mr. Scrooge embora isso seja completamente irrelevante. "Espera mais um bocado, pode ser que eles se tenham atrasado"-dizia-me o Pai Natal. "Vamos mas é embora. Nove são nove. Se eles não estão cá, é porque já não vêm! Bora lá que está um frio de rachar"- vociferou o Mr. Scrooge. O último argumento sensibilizou-me e, para desgosto do Pai Natal, lá arranquei. Conhecia a zona, tinha tracks no GPS e quanto à bicicleta, antes sozinho que parado.
Fui subindo a encosta, inicialmente por uns bosques de pinheiros e, depois, por um estradão que começa junto a um parque de diversões de motoqueiros (vulgo Motocós). Ao longe viam-se as montanhas nevadas de Espanha.
Sem grande esforço, embora bufando um pouco, pus-me na crista da Serra onde se viam os restos de nevões recentes. Os estradões estavam ainda meio gelados, permitindo um avanço fácil mas adivinhando um regresso mais trabalhoso.
A meio do trajecto de estradões viro para os caminhos que me levariam a Alvadia.
Um pouco à frente engano-me e continuo fora do track. Quando dou conta, o Pai Natal imediatamente me aconselhou a voltar atrás para apanhar o risco no GPS. O Mr. Scrooge logo respondeu "Deixa lá o track. O trilho é porreiro e vai quase na mesma direcção. Vai lá à descoberta." Acatei os conselhos do último. Mr. Scrooge torcia um sorriso venenoso em direcção ao Pai Natal que, de bochechas muito vermelhas, olhava o chão. O caminho era, realmente, interessante e levou-me à aldeia de Lamas.
No caminho, apreciei a estética das centenas de anos de adaptação das populações a esta terra.
Passei por este tipo que me fez lembrar alguém.
Na aldeia, uns cachorros viam, da janela, o ciclista passar. Como lá foram parar, não sei.
Foi por estrada que recuperei o track em Alvadia, passando por cima de um rio que ainda terei que identificar.
Obedecendo ao track, segui para Macieira onde fui encontrar os estradões que me levariam ao meu destino distal. Da estrada já se via o Senhor dos Pastéis, onde pensava alimentar o corpo.
Admirava bosques despidos, o céu azul, a cabritagem a pastar no monte
até que vejo uma calçada de pedra de muito bom aspecto que cortava à minha direita. Logo Mr. Scrooge disse "Por aí, vai, atira-te por aí". O Pai Natal, carrancudo, advertiu "Olha que isso sobe e o track desce noutra direcção. Vê lá se queres andar aqui às voltas. Olha que o dia é curto!"
Decidi-me a manter-me "on track" para frustração de Mr. Scrooge. O Pai Natal exibia os dentes todos, vermelhusco e bonacheirão, virado para o primeiro. Conforme descia, rodeava o morro e, do outro lado, adivinhavam-se uns caminhos que poderiam ser as ligações daquele que tínhamos evitado. Muito irado, Mr. Scrooge dizia-nos "Estão a ver? Tínhamos feito ali uns singles do carago!" O Pai Natal encolhia os ombros e eu lá apaziguei o tipo: "Olha Scroo, voltámos cá noutra altura!". O tipo lá se calou.
Conforme avançávamos, víamos, cada vez mais próximo, a fortaleza do Senhor dos Pastéis. Estávamos a entrar em território perigoso.
Provavelmente por ordem desse temível ser, uma horda de ruidosos Motocós assaltou-me em plena subida, cuspindo-me a água do caminho. Sabe-se que estas bestas são mais perigosas quando em alcateia, ficando cegos e extremamente agressivos. A matilha desta canzoada era, desta vez, impressionante, incluindo animalagem de duas e quatro extremidades. Quando passaram, lá me recompus mas tive de aguentar o seu fedor durante umas boas duas centenas de metros.
O final do percurso é um caracol asfaltado que nos leva ao topo. Infelizmente, não havia Pastéis para ninguém. Só com marcação prévia. Entretive-me a olhar para o casamento que decorria no Santuário. Ela, devo confessar, estava bela. Ele, enfim, de olhar malandro, fato de um tecido estupidamente brilhante, não me convenceu. O povo, aperaltado, olhava-me com desconfiança. De facto, todo salpicado de lama, não seria convidado para padrinho. Pensei, ainda, nos tempos em que se exercia o direito de pernada. Ahh, fôra eu alcaide e senhor de um condado...
Iniciei, sem muitas delongas, o meu regresso. O Pai Natal aconselhava-me a regressar pelo mesmo caminho, em que se perdia menos altitude, enquanto Mr. Scrooge, desafiando-o de forma pouco convicta, dizia que o track nos levava lá abaixo, ao rio Olo, e subia pelas fisgas de Ermelo até Lamas de Olo. Decidi o regresso menos altimétrico pois começava a sentir algum cansaço. Em Macieira, "peguei" estrada até Lamas de Olo. Sobre a água da barragem Cimeira soprava um vento gélido. Começava, aqui, a parte difícil do regresso.
A subida às Caravelas do Alvão, ponto mais elevado desta serra, nunca é fácil. Muitos houve que, face a uma escolha entre uma alheira na Cabana e uma subida lá acima, escolheram... a subida. Mas são tolos. Neste Sábado pós-natalício as coisas estavam muito, muito mais complicadas. O piso tinha sido congelado e descongelado múltiplas vezes. O gelo, ao crescer, leveda o solo que se torna fofo como a areia da praia. Os rodados de variados tipos de viaturas formavam uma mousse pastosa que me fazia pensar que pedalava com os pneus vazios. Custou a chegar ao topo e, pensando eu que seria mais fácil daí para a frente, continuou o caminho a custar-me. A primeira descida foi feita à mão sobre um glacé de rocha. Daí para a frente estava tudo empapado. O vento gélido voltava a solidificar a água nas poças do estradão mas ainda tinha muito que gelar. A fruta seca que tinha sido o meu alimento durante todo o dia não chegava como fonte energética. As cãimbras ameaçavam, os dedos das mãos não lhes conhecia a existência e o bom senso fazia-me lentificar a progressão para não ficarem as coisas ainda mais negras. Algures, imaginei companhia...
Pensando que seria fácil chegar ao ponto de início da descida, enganei-me. O terreno semi-gelado e o Sol que se punha, voltavam-me a pôr no cimo do Alvão com a penumbra a cair, como tinha acontecido a primeira vez que lá tinha explorado este caminho com o JAP. Só que desta vez não era Verão.
Finalmente iniciei uma descida rápida, com um esforço extra de tentar ver o caminho no lusco-fusco e evitar uma queda aparatosa. Quase lá em baixo, vi um estradão à direita que parecia ir directo a Tourencinho. Perante o olhar preocupado do Pai Natal, Mr. Scrooge sugeriu que o tomássemos. Como não tenho remédio, lá segui por aí. Passei por algumas aldeias até que um dos caminhos que escolhera se foi estreitando, estreitando, terminando num carreiro alagado e... num campo. Sem vontade para voltar para trás e vendo no GPS que o track estava "100 metros" à frente, galguei vedações passando de campo em campo até voltar a encontrar o asfalto. Quase esmurrava o Scrooge dum raio. Foi muito gelado mas profundamente satisfeito que vi a minha viatura e à beira dela desmontei. Logo apareceu um local que se apresentou como bttista e animador cultural e me ofereceu um local para trocar de roupa, lavar a cara e me convidou para umas febras grelhadas. Foi entre gente animada, acordeão e violão, febras e tinto que me despedi de Tourencinho. Todas as vezes que vou a Trás-os-Montes confirmo o calor humano e generosidade desta gente. Bem hajam.
Quanto ao passeio, quero agradecer a animação dos meus dois companheiros. Estes, pelo menos, não foram lesados pelo meu ritmo lento. Que o leitor não faça circular estas coisas...