VIA ALGARVIANA
Hipótese
Os japoneses usam a palavra DO quando querem significar a via para atingir algo mais ou menos transcendente (a felicidade, o conhecimento, o prazer….). Ju-do , Karate-do, Ken-do, etc. Este foi um dos muitos pensamentos que me veio à cabeça durante a minha participação na travessia em bicicleta da Via Algarviana (Algarviana DO…). O que pretendemos, quando alinhamos numa aventura destas ?
Lembrei-me também (sim, porque durante a travessia há tempo para isso e muito mais) de uma conferência realizada há muitos anos em Lisboa, dedicada ao tema da Felicidade. Vieram teóricos de várias latitudes, doutores e antropólogos… mas o que mais me marcou foi a intervenção de Alberto Pimenta, poeta e professor que muito admiro. Dizia ele, perante uma assembleia meio atónita que sabia o que era a felicidade, e tinha provas disso. Sacou de um recorte de jornal e leu um pequeno anúncio em cujo texto dizia mais ou menos isto : “Declaração – Eu, fulana de tal, declaro que o dia mais feliz da minha vida, foi o dia em que prestei juramento de bandeira para mulher-polícia, etc…” Tal e qual. Será isto a felicidade? Provavelmente….
O “velho” Fernando Pessoa também escreveu em tempos, algo sobre a ceifeira e a sua felicidade (precisamente porque) inconsciente.
Consciente ou inconscientemente, a felicidade é algo que interessa a todos, e que é diferente para cada um.
Será isso que procuramos quando andamos de bicicleta? Ser felizes ? Ou será que a felicidade acontece apenas quando precisamente não se está procurando? É uma coisa de momentos?
Estes pensamentos ocorrem-me quando recordo que, após uma grande subida, atingimos uma cumeada onde, pela primeira vez e depois de mais de 180 km desde a saída de Alcoutim, avistamos o mar…
Tese
A Travessia da Via Algarviana em bicicleta de montanha (ou a pé ou a cavalo, por exemplo) é uma das ainda possíveis verdadeiras aventuras neste país. O Algarve não é só aquela faixazinha com 4 ou 5 km a contar do mar…Pelo contrário, é muito mais que isso. A serra e o barrocal algarvios, completamente desconhecidos da grande maioria dos portugueses (algarvios incluídos) têm muito a oferecer a quem os visite. No extremo oposto do turismo de massas de Armações de Pêras e outras Vilamouras, o sossego e as paisagens das zonas rurais e serranas proporcionam experiências inesquecíveis a todos os amantes da Natureza que aí se dirijam.
A Via Algarviana começou a ser projectada em 1995, sendo o seu primeiro troço inaugurado em 2001. A partir de 2006 as coisas aconteceram mais rapidamente e actualmente ela está completamente marcada. Está, digamos assim, mais virada para o pedestrianismo, mas pode (e deve) ser feita em bicicleta. O uso de um GPS é aconselhável, apesar de haver muito poucos locais onde as marcações não estão perfeitas. Cabe aqui uma palavra de reconhecimento ao excelente trabalho realizado por João Ministro e a sua equipa.
Há já algum tempo que o pessoal da pedrAmarela resolveu mandar-se a esta aventura. De início pensámos em fazê-la em autonomia total, mas surgiu recentemente a hipótese de utilização de uma carrinha de apoio, que foi prontamente agarrada, graças à disponibilidade do Nuno Ferreira para nos acompanhar e facilitar bastante todos os aspectos logísticos. Sendo assim, o Jorge Caiado e o Miguel Romão (grandes mentores da nossa travessia) deslocaram-se antecipadamente aos vários locais onde tencionávamos fazer a divisão do trajecto e trataram das reservas de alojamento respectivas. Sabíamos que durante o período da Páscoa deste ano havia uma travessia organizada em cinco dias, mas para nós não dava: por indisponibilidade de alguns, só dispúnhamos de quatro dias para a fazer. Algo que eu iria pagar… como veremos adiante. Nas vésperas de arrancarmos houve uma desistência devido a problemas familiares pelo que o grupo ficou constituído pelo Jorge Caiado, o Miguel Romão, o Nuno Diniz e eu próprio, para além do nosso director de logística Nuno Ferreira. Ao terceiro dia, juntou-se também a nós o Rui Valente.
Demonstração
7 de Abril de 2009
Depois da recolha dos vários pedalantes, a velha Ford Transit (prontamente alcunhada de “pedrAmobile”) lá seguiu em direcção a Alcoutim. Parámos em Beja para um lanchinho e acabámos por chegar ao destino cerca das oito da noite. Ficámos instalados na Pousada de Juventude. Excelentemente situada (junto ao Guadiana) e com uma arquitectura muito interessante, é um óptimo local para pernoitar (e não só). Jantámos na Estalagem que fica mesmo ao lado. Nessa noite, ainda não percebi bem porquê, não dormi quase nada…
8 de Abril de 2009
1ª etapa: Alcoutim – Casas Baixas
No meio de coisa nenhuma
Depois do belo pequeno almoço na Pousada, lá arrancámos às 9:30 da matina, cheios de vontade de pedalar e de conhecer o interior do Algarve.
Os primeiros quilómetros acompanham a margem direita do Guadiana no sentido sul-norte. É o Grande Rio do Sul e mete respeito. Uma maravilha.
Ao fim de cerca de dez quilómetros passamos junto ao primeiro ponto de interesse cultural: os menires do Lavajo, e pouco depois na primeira aldeia, Corte Tabelião.
Nesta, como nas seguintes desta primeira etapa, fazem-se sentir os efeitos da desertificação : não se vê quase ninguém e quando isso acontece, são apenas pessoas com idade avançada. Agricultura, nem pó. Os montes são lindíssimos, mas não há árvores, apenas arbustos. Portugal profundo, mesmo!
Perto dos 25km passamos em Balurcos de Cima e os lampiões do grupo não resistem a uma pose junto da casa de um benfiquista local …
Mais adiante teremos que desmontar para atravessar a Ribeira da Foupana, que eu e o Miguel já atravessáramos no Minas-Castro Marim do ano passado, mas noutro local, e com muito mais caudal !
A seguir apanhamos a primeira grande subida da Via Algarviana, ao cimo da qual nos esperava a “pedrAmobile” mais o Nuno. Ele veio, aliás, ter connosco a meio da subida, pois trouxe a sua Stumpjumper e aproveitou para também fazer umas pequenas pedaladas… No alto, devorámos um folar que o Jorge tinha trazido. Soube pouco bem, soube… A propósito de Jorge…. 15 km depois iria ter o primeiro de uma longa série de furos….
Voltámos a parar em Balurquinhos (km 52), onde o Nuno já nos esperava com umas sandes de presunto e umas cervejolas. Sem carburante, isto não anda.
Já com 60km percorridos chegamos a Vaqueiros, onde reabastecemos de água (neste dia apanhámos 28º ao sol e sem árvores…)e estivemos à conversa com o Sr. Eduardo.
De Vaqueiros até ao final da etapa, ui ! ui! é só subidas…. e das boas….
Já depois das 16:30 chegámos a Casas Baixas, onde pernoitámos no Centro de Descoberta do Mundo Rural que existe no local onde outrora foi uma escola primária.
À nossa espera estava a D. Otília, uma senhora muito dinâmica e super simpática que, ainda por cima, nos ofereceu um folar. Viva a Páscoa! Material arrumado e banhos tomados, e aí vai a pedrAmobile em direcção ao Cachopo, onde já tínhamos marcado um jantar de javali e veado no restaurante Charrua. Nem vale a pena comentar…
Voltei a não dormir grande coisa, o que me deixou um bocado preocupado.
Foi uma primeira etapa agradável, com 70 e picos km e um desnível acumulado de 2000 e poucos metros, feita à média de 12,9 o que deu 5h40m a pedalar e 2h parados.
9 de Abril de 2009
2ª etapa: Casas Baixas – São Bartolomeu de Messines
Parises, o Caldeirão e kick boxing
Acordámos às 8:00 e comemos uns bolos que um daqueles vendedores ambulantes trazem às aldeias em carrinhas. Calorias que nos fizeram imediatamente falta, porque foi preciso empurrar a carrinha. Com o frio da noite, aborreceu-se e resolveu não pegar.
Às 9 e meia estávamos a começar a pedalar e meia dúzia de quilómetros depois passámos no Cachopo, onde na véspera tínhamos alarvado , perdão, jantado…
Paragem no café local e no quiosque da D. Otília que mais uma vez nos brindou com uma oferta, desta vez um copinho de licor de poejo….. maravilha!
Saímos do Cachopo a subir (e bem!) e passamos num vale onde existe uma casa meio mourisca, meio acastelada, mas fantástica.
A paisagem é já muito diferente da do primeiro dia. Já há árvores . Vêem-se quintas e terrenos cultivados, e passamos em vales verdejantes e bem bonitos, como, por exemplo o da Ribeira de Odeleite.
Desde o início da etapa até Parises, fizemos cerca de 30km muitíssimo duros : sobe, sobe, sobe, desce, ribeira, sobe, sobe, sobe, desce, ribeira, sobe, sobe, etc . Não sei se estão a ver….quando cheguei à igreja de Parises eu já estava era com vontade de ir pedir umas descidas aos santinhos…
Depois a coisa melhora um bocado, mas aconteceu-nos então o primeiro engano no percurso e acabámos por fazer à volta de 2km de alcatrão não previstos antes de Barranco do Velho.
Aí comi uma das melhores sandes de presunto da minha vida e bebi uma bela cervejola no Café Ponto de Encontro. O meu reconhecimento. Ah … e também um bolo de mel que o Nuno tinha arranjado não sei onde. Daquelas maravilhas que só há mesmo no campo…
Reconfortados, seguimos por um trilho espectacular na cumeada da Serra do Caldeirão, com vistas fantásticas para a esquerda e a direita, com passagem junto a um moinho perto do marco geodésico a 521m de altitude.
Aparece finalmente uma descida vertiginosa com cerca de 3km e que acaba por ser a despedida do Caldeirão (uf!). Nessa zona encontrámos um grupo de caminheiros suíços, o Jorge teve o seu segundo furo e o Miguel teve um chupão na corrente. Tudo se resolve e ao fim de 120 e tal km de viagem , entramos no primeiro single track da Via Algarviana, que nos encaminha para Salir.
Depois entre Salir e Alte há trilhos muito bonitos, com pedras e curvas que nos deliciam até chegarmos a uma subida “pior que o deus me livre”… inclinadíssima e cheia de calhaus enormes e soltos . Um desafio que só o Jorge conseguiu ultrapassar na totalidade. Chapéu. Passar, passou, mas pouco depois, já no planalto seguinte, furou de novo e partiu um raio da roda traseira da Trek. Grande galo! (ou pneus em mau estado, digo eu…). Um pouco mais à frente, em Benafim, estava o Nuno (abençoado Nuno…),que lhe emprestou a Stumpjumper , enquanto levava a roda da Trek a uma oficina mesmo ali ao pé para substituir o raio. É o que dá ter apoio. E ainda bem! Também serviu para o Jorge ter finalmente contacto com uma bicicleta “a sério” (private joke).
Depois ainda andaríamos perdidos numa zona onde o trilho não estava muito visível a seguir a Alte. Andámos um bom bocado com as binas às costas, por cima de uns calhaus, e tal…. Mas aventura é mesmo isto…
Com a saída tardia e mais os percalços do dia, acabámos por chegar a S. Bartolomeu de Messines quase às 8 da noite. Ficámos nas excelentes instalações da Casa do Povo, onde fomos bem recebidos, em especial pelo amigo Mário, um ciclista local que nos acompanhou no jantar num restaurante por ele indicado. Estavam lá na casa do povo uns praticantes de kick boxing que iriam fazer uns combates no dia seguinte. Felizmente para eles, não se meteram connosco….
Nesta noite consegui dormir um bocadinho melhor, até porque o empeno começava a fazer-se sentir…
Foram 90km de BTT, com 2400m de acumulado, feitos em 7 horas e tal de pedal, à média de 12km/h. Estivémos 3 horas parados durante o percurso!!
10 de Abril de 2009
3ª etapa: S.Bartolomeu de Messines – Monchique
Via Sacra
Sexta-feira santa. Às 8 da matina já estava connosco o amigo Leonix (Rui Valente). Mais um pedrAmarela!
Tomámos o pequeno almoço na casa do povo. A bicicleta do Miguel estava com um pneu em baixo: furo lento. O tempo estava fresco e ventoso e ameaçava chuva. O cansaço começa a fazer das suas e só conseguimos arrancar já depois das 10 da manhã. Os primeiros km são muito agradáveis e rolamos durante algum tempo (quase 10km) nas margens da grande Barragem do Funcho. Local magnífico.
Depois de passarmos o paredão, um engano no track e lá vamos atrás do Jorge por uma rampa de alcatrão inclinadíssima…. Só lá mesmo no alto é que se deu pelo engano…..fiquei com vontade de atirar o Jorge à água. Corrigido o erro lá seguimos até ao local que referi acima : primeiro avistamento do mar!!! Portimão a estibordo! Tínhamos pedalado 21,5km desde Messines e 185 desde Alcoutim : já merecíamos.
Depois disto, foi um “ver se te avias”…. Eu já ia empenadíssimo e apanho o,ou um dos maiores “rompe-pernas” de Portugal. Na zona de Silves, uma sucessão de rampas brutais, que me deixaram de rastos… era sexta-feira santa e eu fiquei na dúvida se a via sacra era a de Jesus com a cruz às costas, ou a minha a empurrar a bicicleta por ali acima. Santo Abrenúncio!
Mais uns km e para me proteger e para não atrasar o pessoal, decidi neutralizar a parte final desta etapa, para no dia seguinte estar em condições de chegar ao Cabo a pedalar. Para mim, realmente, cinco dias é que tinha sido…. Não me preparei o suficiente, nos últimos meses tenho andado pouco e a idade já não perdoa certo tipo de abusos.
Fiquei na Ribeira de Odelouca, onde passei a fazer companhia ao Nuno na pedrAmobile.
O resto do pessoal seguiu, com o Miguel também em grande esforço, em direcção à Picota, onde choveu e soprou um vento gelado de cerca de 30km/h, passaram ainda num local onde foram atacados por vespas e ferroados com fartura, o Jorge voltou a furar … ou seja, fiz bem em parar!
Inicialmente esta etapa era para terminar em Marmelete, mas devido ao adiantado da hora e às condições meteorológicas, ficou-se por Monchique, no final do fantástico single track que desce da Picota. Foram à volta 60km com 2200m de acumulado, 5 h20m a pedalar a 11,2km/h com quase 3h de paragens…
Fomos dormir a Marmelete, pois era lá que estava marcado. Chegámos às 19horas. Parecia Trá-os-Montes : frio, vento e chuva de inverno….Este Algarve não tem mesmo nada a ver com o outro. No clima e não só. Imaginem que a senhora responsável pela chave da Casa do Povo, que só tinha falado por telefone com o Jorge, nos entregou a chave e nem foi lá connosco. Fez absoluta confiança em nós…. Onde é que se vê uma coisa destas hoje em dia ?! Os banhos foram na Escola Primária ao lado e dormimos num salão sobre uns colchões de ginástica. O jantar foi no restaurante mesmo ao lado, onde comemos uns belos bitoques servidos por uma moça super simpática! Maravilha.
13 de Abril de 2009
4ª etapa: Monchique – Cabo de S.Vicente
Caminho Terrestre para Sagres
Devido à alteração da véspera recomeçou-se no local onde se tinha terminado : Monchique. Não sem a habitual mudança de câmaras de ar na bike do Jorge (tinha os dois pneus em baixo de manhã) e o empurrão na carrinha (prática matinal quotidiana…). Belo pequeno almoço no local do jantar anterior. Recomeço da pedalada às 10horas.
No início desta etapa choveu “picaretas”….. mas depois o tempo começou a compor-se. Passada a zona da Fóia, não haveria mais dificuldade de registo.
Em Bensafrim “almoçámos” e pouco depois entrámos numa zona bastante bonita no Perímetro Florestal de Barão de S.João. Muitas eólicas há nesta zona ventosa por natureza.
Os trilhos daí para a frente são quase sempre “a descer” e entramos, a partir de Vila do Bispo na típica paisagem do “fim de Portugal”. Muito vento depois chegamos finalmente ao “quintal” do Infante D.Henrique.
95km, 1800m de acumulado, 6h18 de pedal a 15,2km/h com 2h de paragens. Cota mais alta 855m.
As fotos finais com a satisfação do desafio vencido e a merecida comemoração com espumante. Venha lá o governo que vier, estes 4 dias de BTT e companheirismo já ninguém nos tira! Quando é a próxima?
cqd
Hipótese
Os japoneses usam a palavra DO quando querem significar a via para atingir algo mais ou menos transcendente (a felicidade, o conhecimento, o prazer….). Ju-do , Karate-do, Ken-do, etc. Este foi um dos muitos pensamentos que me veio à cabeça durante a minha participação na travessia em bicicleta da Via Algarviana (Algarviana DO…). O que pretendemos, quando alinhamos numa aventura destas ?
Lembrei-me também (sim, porque durante a travessia há tempo para isso e muito mais) de uma conferência realizada há muitos anos em Lisboa, dedicada ao tema da Felicidade. Vieram teóricos de várias latitudes, doutores e antropólogos… mas o que mais me marcou foi a intervenção de Alberto Pimenta, poeta e professor que muito admiro. Dizia ele, perante uma assembleia meio atónita que sabia o que era a felicidade, e tinha provas disso. Sacou de um recorte de jornal e leu um pequeno anúncio em cujo texto dizia mais ou menos isto : “Declaração – Eu, fulana de tal, declaro que o dia mais feliz da minha vida, foi o dia em que prestei juramento de bandeira para mulher-polícia, etc…” Tal e qual. Será isto a felicidade? Provavelmente….
O “velho” Fernando Pessoa também escreveu em tempos, algo sobre a ceifeira e a sua felicidade (precisamente porque) inconsciente.
Consciente ou inconscientemente, a felicidade é algo que interessa a todos, e que é diferente para cada um.
Será isso que procuramos quando andamos de bicicleta? Ser felizes ? Ou será que a felicidade acontece apenas quando precisamente não se está procurando? É uma coisa de momentos?
Estes pensamentos ocorrem-me quando recordo que, após uma grande subida, atingimos uma cumeada onde, pela primeira vez e depois de mais de 180 km desde a saída de Alcoutim, avistamos o mar…
Tese
A Travessia da Via Algarviana em bicicleta de montanha (ou a pé ou a cavalo, por exemplo) é uma das ainda possíveis verdadeiras aventuras neste país. O Algarve não é só aquela faixazinha com 4 ou 5 km a contar do mar…Pelo contrário, é muito mais que isso. A serra e o barrocal algarvios, completamente desconhecidos da grande maioria dos portugueses (algarvios incluídos) têm muito a oferecer a quem os visite. No extremo oposto do turismo de massas de Armações de Pêras e outras Vilamouras, o sossego e as paisagens das zonas rurais e serranas proporcionam experiências inesquecíveis a todos os amantes da Natureza que aí se dirijam.
A Via Algarviana começou a ser projectada em 1995, sendo o seu primeiro troço inaugurado em 2001. A partir de 2006 as coisas aconteceram mais rapidamente e actualmente ela está completamente marcada. Está, digamos assim, mais virada para o pedestrianismo, mas pode (e deve) ser feita em bicicleta. O uso de um GPS é aconselhável, apesar de haver muito poucos locais onde as marcações não estão perfeitas. Cabe aqui uma palavra de reconhecimento ao excelente trabalho realizado por João Ministro e a sua equipa.
Há já algum tempo que o pessoal da pedrAmarela resolveu mandar-se a esta aventura. De início pensámos em fazê-la em autonomia total, mas surgiu recentemente a hipótese de utilização de uma carrinha de apoio, que foi prontamente agarrada, graças à disponibilidade do Nuno Ferreira para nos acompanhar e facilitar bastante todos os aspectos logísticos. Sendo assim, o Jorge Caiado e o Miguel Romão (grandes mentores da nossa travessia) deslocaram-se antecipadamente aos vários locais onde tencionávamos fazer a divisão do trajecto e trataram das reservas de alojamento respectivas. Sabíamos que durante o período da Páscoa deste ano havia uma travessia organizada em cinco dias, mas para nós não dava: por indisponibilidade de alguns, só dispúnhamos de quatro dias para a fazer. Algo que eu iria pagar… como veremos adiante. Nas vésperas de arrancarmos houve uma desistência devido a problemas familiares pelo que o grupo ficou constituído pelo Jorge Caiado, o Miguel Romão, o Nuno Diniz e eu próprio, para além do nosso director de logística Nuno Ferreira. Ao terceiro dia, juntou-se também a nós o Rui Valente.
Demonstração
7 de Abril de 2009
Depois da recolha dos vários pedalantes, a velha Ford Transit (prontamente alcunhada de “pedrAmobile”) lá seguiu em direcção a Alcoutim. Parámos em Beja para um lanchinho e acabámos por chegar ao destino cerca das oito da noite. Ficámos instalados na Pousada de Juventude. Excelentemente situada (junto ao Guadiana) e com uma arquitectura muito interessante, é um óptimo local para pernoitar (e não só). Jantámos na Estalagem que fica mesmo ao lado. Nessa noite, ainda não percebi bem porquê, não dormi quase nada…
8 de Abril de 2009
1ª etapa: Alcoutim – Casas Baixas
No meio de coisa nenhuma
Depois do belo pequeno almoço na Pousada, lá arrancámos às 9:30 da matina, cheios de vontade de pedalar e de conhecer o interior do Algarve.
Os primeiros quilómetros acompanham a margem direita do Guadiana no sentido sul-norte. É o Grande Rio do Sul e mete respeito. Uma maravilha.
Ao fim de cerca de dez quilómetros passamos junto ao primeiro ponto de interesse cultural: os menires do Lavajo, e pouco depois na primeira aldeia, Corte Tabelião.
Nesta, como nas seguintes desta primeira etapa, fazem-se sentir os efeitos da desertificação : não se vê quase ninguém e quando isso acontece, são apenas pessoas com idade avançada. Agricultura, nem pó. Os montes são lindíssimos, mas não há árvores, apenas arbustos. Portugal profundo, mesmo!
Perto dos 25km passamos em Balurcos de Cima e os lampiões do grupo não resistem a uma pose junto da casa de um benfiquista local …
Mais adiante teremos que desmontar para atravessar a Ribeira da Foupana, que eu e o Miguel já atravessáramos no Minas-Castro Marim do ano passado, mas noutro local, e com muito mais caudal !
A seguir apanhamos a primeira grande subida da Via Algarviana, ao cimo da qual nos esperava a “pedrAmobile” mais o Nuno. Ele veio, aliás, ter connosco a meio da subida, pois trouxe a sua Stumpjumper e aproveitou para também fazer umas pequenas pedaladas… No alto, devorámos um folar que o Jorge tinha trazido. Soube pouco bem, soube… A propósito de Jorge…. 15 km depois iria ter o primeiro de uma longa série de furos….
Voltámos a parar em Balurquinhos (km 52), onde o Nuno já nos esperava com umas sandes de presunto e umas cervejolas. Sem carburante, isto não anda.
Já com 60km percorridos chegamos a Vaqueiros, onde reabastecemos de água (neste dia apanhámos 28º ao sol e sem árvores…)e estivemos à conversa com o Sr. Eduardo.
De Vaqueiros até ao final da etapa, ui ! ui! é só subidas…. e das boas….
Já depois das 16:30 chegámos a Casas Baixas, onde pernoitámos no Centro de Descoberta do Mundo Rural que existe no local onde outrora foi uma escola primária.
À nossa espera estava a D. Otília, uma senhora muito dinâmica e super simpática que, ainda por cima, nos ofereceu um folar. Viva a Páscoa! Material arrumado e banhos tomados, e aí vai a pedrAmobile em direcção ao Cachopo, onde já tínhamos marcado um jantar de javali e veado no restaurante Charrua. Nem vale a pena comentar…
Voltei a não dormir grande coisa, o que me deixou um bocado preocupado.
Foi uma primeira etapa agradável, com 70 e picos km e um desnível acumulado de 2000 e poucos metros, feita à média de 12,9 o que deu 5h40m a pedalar e 2h parados.
9 de Abril de 2009
2ª etapa: Casas Baixas – São Bartolomeu de Messines
Parises, o Caldeirão e kick boxing
Acordámos às 8:00 e comemos uns bolos que um daqueles vendedores ambulantes trazem às aldeias em carrinhas. Calorias que nos fizeram imediatamente falta, porque foi preciso empurrar a carrinha. Com o frio da noite, aborreceu-se e resolveu não pegar.
Às 9 e meia estávamos a começar a pedalar e meia dúzia de quilómetros depois passámos no Cachopo, onde na véspera tínhamos alarvado , perdão, jantado…
Paragem no café local e no quiosque da D. Otília que mais uma vez nos brindou com uma oferta, desta vez um copinho de licor de poejo….. maravilha!
Saímos do Cachopo a subir (e bem!) e passamos num vale onde existe uma casa meio mourisca, meio acastelada, mas fantástica.
A paisagem é já muito diferente da do primeiro dia. Já há árvores . Vêem-se quintas e terrenos cultivados, e passamos em vales verdejantes e bem bonitos, como, por exemplo o da Ribeira de Odeleite.
Desde o início da etapa até Parises, fizemos cerca de 30km muitíssimo duros : sobe, sobe, sobe, desce, ribeira, sobe, sobe, sobe, desce, ribeira, sobe, sobe, etc . Não sei se estão a ver….quando cheguei à igreja de Parises eu já estava era com vontade de ir pedir umas descidas aos santinhos…
Depois a coisa melhora um bocado, mas aconteceu-nos então o primeiro engano no percurso e acabámos por fazer à volta de 2km de alcatrão não previstos antes de Barranco do Velho.
Aí comi uma das melhores sandes de presunto da minha vida e bebi uma bela cervejola no Café Ponto de Encontro. O meu reconhecimento. Ah … e também um bolo de mel que o Nuno tinha arranjado não sei onde. Daquelas maravilhas que só há mesmo no campo…
Reconfortados, seguimos por um trilho espectacular na cumeada da Serra do Caldeirão, com vistas fantásticas para a esquerda e a direita, com passagem junto a um moinho perto do marco geodésico a 521m de altitude.
Aparece finalmente uma descida vertiginosa com cerca de 3km e que acaba por ser a despedida do Caldeirão (uf!). Nessa zona encontrámos um grupo de caminheiros suíços, o Jorge teve o seu segundo furo e o Miguel teve um chupão na corrente. Tudo se resolve e ao fim de 120 e tal km de viagem , entramos no primeiro single track da Via Algarviana, que nos encaminha para Salir.
Depois entre Salir e Alte há trilhos muito bonitos, com pedras e curvas que nos deliciam até chegarmos a uma subida “pior que o deus me livre”… inclinadíssima e cheia de calhaus enormes e soltos . Um desafio que só o Jorge conseguiu ultrapassar na totalidade. Chapéu. Passar, passou, mas pouco depois, já no planalto seguinte, furou de novo e partiu um raio da roda traseira da Trek. Grande galo! (ou pneus em mau estado, digo eu…). Um pouco mais à frente, em Benafim, estava o Nuno (abençoado Nuno…),que lhe emprestou a Stumpjumper , enquanto levava a roda da Trek a uma oficina mesmo ali ao pé para substituir o raio. É o que dá ter apoio. E ainda bem! Também serviu para o Jorge ter finalmente contacto com uma bicicleta “a sério” (private joke).
Depois ainda andaríamos perdidos numa zona onde o trilho não estava muito visível a seguir a Alte. Andámos um bom bocado com as binas às costas, por cima de uns calhaus, e tal…. Mas aventura é mesmo isto…
Com a saída tardia e mais os percalços do dia, acabámos por chegar a S. Bartolomeu de Messines quase às 8 da noite. Ficámos nas excelentes instalações da Casa do Povo, onde fomos bem recebidos, em especial pelo amigo Mário, um ciclista local que nos acompanhou no jantar num restaurante por ele indicado. Estavam lá na casa do povo uns praticantes de kick boxing que iriam fazer uns combates no dia seguinte. Felizmente para eles, não se meteram connosco….
Nesta noite consegui dormir um bocadinho melhor, até porque o empeno começava a fazer-se sentir…
Foram 90km de BTT, com 2400m de acumulado, feitos em 7 horas e tal de pedal, à média de 12km/h. Estivémos 3 horas parados durante o percurso!!
10 de Abril de 2009
3ª etapa: S.Bartolomeu de Messines – Monchique
Via Sacra
Sexta-feira santa. Às 8 da matina já estava connosco o amigo Leonix (Rui Valente). Mais um pedrAmarela!
Tomámos o pequeno almoço na casa do povo. A bicicleta do Miguel estava com um pneu em baixo: furo lento. O tempo estava fresco e ventoso e ameaçava chuva. O cansaço começa a fazer das suas e só conseguimos arrancar já depois das 10 da manhã. Os primeiros km são muito agradáveis e rolamos durante algum tempo (quase 10km) nas margens da grande Barragem do Funcho. Local magnífico.
Depois de passarmos o paredão, um engano no track e lá vamos atrás do Jorge por uma rampa de alcatrão inclinadíssima…. Só lá mesmo no alto é que se deu pelo engano…..fiquei com vontade de atirar o Jorge à água. Corrigido o erro lá seguimos até ao local que referi acima : primeiro avistamento do mar!!! Portimão a estibordo! Tínhamos pedalado 21,5km desde Messines e 185 desde Alcoutim : já merecíamos.
Depois disto, foi um “ver se te avias”…. Eu já ia empenadíssimo e apanho o,ou um dos maiores “rompe-pernas” de Portugal. Na zona de Silves, uma sucessão de rampas brutais, que me deixaram de rastos… era sexta-feira santa e eu fiquei na dúvida se a via sacra era a de Jesus com a cruz às costas, ou a minha a empurrar a bicicleta por ali acima. Santo Abrenúncio!
Mais uns km e para me proteger e para não atrasar o pessoal, decidi neutralizar a parte final desta etapa, para no dia seguinte estar em condições de chegar ao Cabo a pedalar. Para mim, realmente, cinco dias é que tinha sido…. Não me preparei o suficiente, nos últimos meses tenho andado pouco e a idade já não perdoa certo tipo de abusos.
Fiquei na Ribeira de Odelouca, onde passei a fazer companhia ao Nuno na pedrAmobile.
O resto do pessoal seguiu, com o Miguel também em grande esforço, em direcção à Picota, onde choveu e soprou um vento gelado de cerca de 30km/h, passaram ainda num local onde foram atacados por vespas e ferroados com fartura, o Jorge voltou a furar … ou seja, fiz bem em parar!
Inicialmente esta etapa era para terminar em Marmelete, mas devido ao adiantado da hora e às condições meteorológicas, ficou-se por Monchique, no final do fantástico single track que desce da Picota. Foram à volta 60km com 2200m de acumulado, 5 h20m a pedalar a 11,2km/h com quase 3h de paragens…
Fomos dormir a Marmelete, pois era lá que estava marcado. Chegámos às 19horas. Parecia Trá-os-Montes : frio, vento e chuva de inverno….Este Algarve não tem mesmo nada a ver com o outro. No clima e não só. Imaginem que a senhora responsável pela chave da Casa do Povo, que só tinha falado por telefone com o Jorge, nos entregou a chave e nem foi lá connosco. Fez absoluta confiança em nós…. Onde é que se vê uma coisa destas hoje em dia ?! Os banhos foram na Escola Primária ao lado e dormimos num salão sobre uns colchões de ginástica. O jantar foi no restaurante mesmo ao lado, onde comemos uns belos bitoques servidos por uma moça super simpática! Maravilha.
13 de Abril de 2009
4ª etapa: Monchique – Cabo de S.Vicente
Caminho Terrestre para Sagres
Devido à alteração da véspera recomeçou-se no local onde se tinha terminado : Monchique. Não sem a habitual mudança de câmaras de ar na bike do Jorge (tinha os dois pneus em baixo de manhã) e o empurrão na carrinha (prática matinal quotidiana…). Belo pequeno almoço no local do jantar anterior. Recomeço da pedalada às 10horas.
No início desta etapa choveu “picaretas”….. mas depois o tempo começou a compor-se. Passada a zona da Fóia, não haveria mais dificuldade de registo.
Em Bensafrim “almoçámos” e pouco depois entrámos numa zona bastante bonita no Perímetro Florestal de Barão de S.João. Muitas eólicas há nesta zona ventosa por natureza.
Os trilhos daí para a frente são quase sempre “a descer” e entramos, a partir de Vila do Bispo na típica paisagem do “fim de Portugal”. Muito vento depois chegamos finalmente ao “quintal” do Infante D.Henrique.
95km, 1800m de acumulado, 6h18 de pedal a 15,2km/h com 2h de paragens. Cota mais alta 855m.
As fotos finais com a satisfação do desafio vencido e a merecida comemoração com espumante. Venha lá o governo que vier, estes 4 dias de BTT e companheirismo já ninguém nos tira! Quando é a próxima?
cqd