A beira alta sempre me seduziu. Rolando pela IP5, agora substituída pela mais rolante A25, o olhar era-me roubado do asfalto para aquelas superfícies graníticas, ondulantes, depois de passar Viseu e até chegar próximo da Guarda. Num serão de passeio nas cartas do IGEOE, tentei entender como acompanhar o rio Paiva mas percebi que é praticamente impossível fazê-lo em duas rodas. No entanto, de tanto seguir o trajecto do rio fui dar à sua nascente. Duas serras me cativaram: Lapa e Leomil. Ficavam nessa zona que me atraía há muito. Aquilino chamava-lhes Terras do Demo. Com ponto de partida em Aguiar da Beira, rabisquei um trajecto nessas cartas e guardei para um dia o explorar. Assim aconteceu este Sábado.
O bom tempo chegou e, por muito cansado que estivesse da semana de trabalho, não cedi à tentação do leito morno e arranquei cedo. Sempre é hora e meia para lá chegar. De tanto entusiasmo, dei conta, ao chegar, que nem carteira, nem documentos, nem dinheiro, nem chaves levava. Esperei não ter encontros imediatos com agentes da autoridade e que o gasóleo chegasse para o regresso.
Depois de uma inspecção sumária à vila, arranquei em direcção aos pinhais que tentam crescer entre toda a pedra que é exposta no planalto beirão.
Os trilhos eram largos, de bom piso, e sem grandes desníveis. Pensei que seria um bom trajecto para guardar na gaveta para quando, com noventa anos, não aguentar acumulados acentuados e pisos que sacodem os ossos. Interiormente, agradeci não estarem comigo companheiros a queixarem-se de fazerem 150 Km para andar em estradões...
Começava a encontrar vestígios da actividade humana do passado. Desta vez aconselhavam-me a pôr-me na alheta para não ser intoxicado por metais pesados.
Nos primeiros quilómetros portei-me bem e segui à risca o risco que tinha traçado apesar de, por vezes, ter tido a tentação de improvisar. O trilho levou-me à origem do Vouga:
Devo confessar que não fiquei impressionado. Achei tudo muito arbitrário. Porquê aquele charco e não outro, ao lado?
Avancei em direcção ao povoado próximo, Senhora da Lapa.
Granito e muros são coisas que abundam por aqui.
A Senhora da Lapa é daquelas povoações que teve origem, como podem ler na tabuleta, em pastorinhas alucinadas.
A aldeia é, toda ela, dedicada à religiosidade. Imaginei hordas de fiéis, toneladas de tachos de arroz de frango e montanhas de garrafões num qualquer dia de festa. Neste Sábado o lugar estava sossegado, com devotas, nos seus hábitos cinzentos, a caminharem convictamente de uma casa para outra.
Subi em direcção ao alto. Chamarem serra da Lapa a este montículo saliente no planalto parece-me exagerado. Lá em cima abundam cruzes, Cristos, abrigos para cruzes e, até, uma cruz a perder a tusa.
Espantado, confirmo o sucesso da Carmo nestas regiões remotas. Será ela prima de algum secretário de Estado?
-"É meu, é meu"- pareceu-me ouvir. Juro que não lhe toquei. Muito menos encostei a bicicleta e carreguei no botão da máquina fotográfica.
Apontei à serra de Leomil. Tinha mais esperanças neste maciço. Em caminho, passo por mais um rio na sua infância. Era o Paiva, o causador desta coisa toda.
Subi, então, à serra, ouvindo as palavras do Miguel Torga: "Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora." Eu sei que ele se referia a Trás-os-Montes mas ele próprio se negava a aceitar a fronteira administrativa do Douro e reclamava, para essa zona, a margem Sul do rio, "toda a vertente do Doiro até aos contrafortes do Montemuro, carne administrativamente enxertada num corpo alheio, que através do Côa, do Távora, do Torto, do Varosa e do Balsemão desagua na grande veia cava materna as lágrimas do exílio".
Ao avançar serra acima vejo indicações de vestígios arqueológicos que me fazem constantemente mudar de rumo e me fazem gastar longos minutos na sua procura. Louvo a câmara de Moimenta que tão numerosas e preciosas indicações colocou no concelho. Pena que algumas estejam destruídas.
Nesta fortificação pré-histórica encontrei algumas relíquias, como esta carica da idade do bronze:
Abundava o lixo pré-histórico de algum neandertal mentecapto.
Retomei o caminho traçado para ser, pouco depois, novamente desviado. Uma estátua-menir (da Serra da Nave), com uma figura desenhada, abençoava-me ao lado do caminho.
A tabuleta explicava aos mais ceguinhos:
Nesta zona chamam orcas às antas. Talvez derivando de arcas? Não interessa. A minha imaginação derivou para o estádio dos dragões: "Vou ao estádio das Orcas ver os Dragões..."-pensei. Imagens épicas de um filme com criaturas incríveis entretiveram-me enquanto avançava.