No Marão, como prometido.

El Solitario

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O almocreve ajustou a cilha e, com um último olhar, deu por terminado o ataviamento da mula. Já se fazia tarde. O relógio de S. Gonçalo começara a tanger as oito badaladas. Partiu.
Amarante dormitava ainda aconchegada pelo manto límpido da neblina do rio.

Ponte de S. Gonçalo, Amarante
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«Só eu é que não dormi». O cumprimento da Promessa, várias vezes adiada, dera-lhe uma noite de pouco descanso. A jornada seria árdua, a preparação era pouca, andava a desleixar-se... Também não ajudava a incerteza do comportamento da companheira com os arreios e cascos novos. Reparava agora que nunca lhe dera nome, era a montada, a companheira, ou a mula simplesmente. Achava-a demasiado “senhora do seu nariz” para se atrever a adivinhar um nome que lhe coubesse em graça. Continuaria por baptizar. Adiante.

Desde que tomara conhecimento da epopeia “Regresso ao Marão” que este pensamento lhe ficou encasquetado na moleirinha. «Um dia serei capaz de fazer uma coisa destas! Partir do nível do mar (ou quase); subir aos mil quatrocentos e tal metros da Serra do Marão; ter o Mundo aos pés naquelas fragas; conhecer Mafomedes (só o nome mete respeito); cruzar mais um par de aldeias de nomes improváveis e regressar ao mar».

Sabia que era uma tolice, mas todos precisamos de um farol. Algo que nos oriente nos momentos mais adversos. Uns chamam-lhe Deus, outros Razão de Viver, este almocreve chama-lhe, simplesmente, Promessa.

Assim, antes que os dias ficassem mais curtos, e as chuvas reclamassem as veredas, lançara-se ao prometido. "Subir à Serra do Marão". E, como sempre, «Nunca sozinho, sempre comigo».

Tomou a estrada sobranceira ao Tâmega em direcção a Fridão. Convinha-lhe um início suave, havia que ganhar cadência, escutar a montada e «não estourar os bofes com imprudências».
Alcançado Fridão, tornou à direita pelo Caminho das Minas da Guiné. Agora descia. Sabia no entanto que, após alcançar a ponte sobre o rio Ôlo, estariam terminadas as benesses dos declives. «A partir daqui não há que enganar, é subir».

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Ponte sobre o Rio Ôlo
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Contrariamente aos seus receios, o fogo não lavrara pelos caminhos que tomava. As manchas verdes, não sendo formadas pelas espécies que mais lhe agradavam, eram, mesmo assim, um conforto.

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"El Solitário"
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Conforto à vista e ao andamento. Já avistara os gigantes de Pena Suar e, pela velocidade com que agitavam as manápulas, antevia que em espaço aberto o vento não ia colaborar.
Assim foi, a partir de Covelo do Monte, mesmo cosido com a encosta, o vento teimava em derrubá-lo. Perdeu a veleidade de alcançar os gigantes e seguiu caminho até ao Parque de Lazer das Lameiras. «Bom sítio para meter uma bucha». Procurou no burnal o casqueiro que entremeara com chouriço e lamentou a falta de um Borba fresco. «Dizem que dá estaleca».

Covelo do Monte
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Parque de Lazer das Lameiras
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Pousada de S. Gonçalo, Alto de Espinho
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Pena Suar
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Pousada de S. Gonçalo, Alto de Espinho
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Após o Alto de Espinho, «que só é alto para quem não tem que subir mais», encontrou “a ponte desaparecida” como lhe haviam confirmado almas caridosas. «Vá lá que estou do lado certo».
A partir daqui a paisagem foi-se transfigurando. O vento amainou permitindo ouvir o silêncio. Os afloramentos de xisto pincelavam as encostas que se empinavam em jeito de desafio.

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E foi numa tirada mais aprumada, numa daquelas rectas que só parecem acabar no céu, que o Diabo o tentou.
Numa carrinha de caixa aberta, o demo, em forma de madeireiro, colocou-se a par e, com voz sibilante, lançou o engodo «Não quer desistir? Tenho lugar p´ròs dois!». O almocreve não se benzeu (não podia largar a arreata da mula, tal era o empenho em vencer a inclinação do caminho), mas lançou resposta rápida. «Nã. Conheço um atalho a descer!». Talvez aturdido pela convicção demonstrada, o mafarrico, desvaneceu-se, lá em cima, na curva. Nunca mais o viu.

Majestoso, o cume foi-se anunciando, alcandorado num maciço rochoso que parecia querer brincar às escondidas, obrigando a mais um volteio para chegar ao famigerado topo.

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Finalmente, e após uma última rampa, o nosso pobre coitado, e a fiel mula, estavam a beber da taça dos valorosos.
«Eu nã te dizia, daqui vê-se o Mundo todo!».

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Antes de iniciar a descida, procurou no alforge os três cêntimos que o acompanharam na viagem. Um por cada filho que aguardava o seu regresso e, depois de encontrar o local apropriado, depositou-os com novo voto «Um dia voltarei». Estranha panca!

Estava cumprida meia promessa, faltava regressar e não seria pelo mesmo caminho. Seguiu em frente em direcção ao talefe da Fraga.
Como já outros haviam amargado, acabara de deixar o topo da serra e já estava a trepar outra vez. Contudo sabia que «As montanhas pagam em beleza o suor de as escalar».

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Então começou a duvidar dos seus desígnios, ou das indicações que recolhera ao traçar a rota. Agora que era a descer via-se obrigado a desmontar?!. O xisto em lascas traiçoeiras atapetava a ladeira que se despenhava por ali abaixo e, como se não bastasse, veículos de tracção motora tinham andado a lavrar recentemente. «Isto só p`ra doidos». Da montada pareceu-lhe ouvir uma voz cúmplice «E nós não somos doidos?!».

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Chegado ao estradão ganhou asas. Num ápice aportou a Mafomedes.

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«Mais rampas?!» Não bradou um impropério em genuíno vernáculo pois estava a cruzar-se com uma anciã. Preferiu desejar «Boa tarde!». Ao que a veneranda senhora, apoiando-se no cajado, respondeu «Vá com Deus, vá com Deus».
Encheu-se de brio e puxou pela mula, não deixando no entanto de pensar «Já encontrei o Diabo, agora vou com Deus. Apre! Já é carga a mais!»

Avisado que após Murgido mais rampas se seguiriam, procurou uma sombra e tasquinhou outro casqueiro, desta vez, recheado com marmelada. Continuava a lamentar o Borba…

Murgido
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Seguiu viagem.
Apesar do Sol se começar a aproximar, perigosamente do horizonte, estava confiante. Agora era sempre a descer. Redobrou cautelas, não fosse ser traído pelo entusiasmo e deitar tudo a perder ao chegar à praia.

Mirador (lá ao fundo, ao centro, o cume do Marão)
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S. Gonçalo de Amarante
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Rio Tâmega
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Após 79,8Km e 2335m de acumulado estava cumprida a Promessa. Esta Promessa.
Pois o almocreve sabe bem o quanto é importante ter sempre uma Promessa por cumprir. Por isso prometeu «Um dia voltarei».

Outras vistas em http://picasaweb.google.pt/viktor.moreira/Marao#
 
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lobo solitario

New Member
Ó almocreve: que negociasteis com a dita senhora? É que o S. Pedro me disse que a crise já chegou lá cima. Com 3 cêntimos não ireis ter grande milagre. Pode ser que vos valha a penitência daquela descida! Presumo que, cascalho ou não, a fizesteis montado na burra?!
 

nunoklein

New Member
Muito, muito bom.

Os Solitários deste forum têm uma mestria no relato das suas jornadas tambem ele singular.

Parabens, um excelente tónico para mais uma semana.
 

indy

Member
Conhecendo bastante bem o percurso em causa, neste caso foi a prosa o que mais me surpreedeu. Gostei particularmente da descrição da escalada à Sra do Marão e resistência à tentação do Diabo. Vá-se lá saber porquê, fez-me recordar algo que li há muito tempo. Depois de procurar nas prateleiras cá de casa, encontrei:

"(...)ficou ali, parado, a olhar, até quase se perder na distância a alta figura do Pastor e se confundirem com a cor da terra os dorsos resignados dos animais. Não vou com ele, dissera, mas foi. Acomodou o alforge ao ombro, ajustou as correias das sandálias que tinham sido do pai e seguiu de longe o rebanho. Juntou-se a ele quando a noite caiu, apareceu da escuridão para a luz da fogueira, e disse, Aqui estou."
 

Miguelowisk

New Member
Quando pensares em voltar a fazer o mesmo , nao vás em solitario ... dá uma apitadela e eu faço-te companhia ja que sou de Amarante !
 

violabike

New Member
Este senhor "Solitário" já há muito tempo que o acompanho, nas crónicas, é claro...!
E nas fotos como testemunho, sabe da poda como ninguém, é uma Pessoa bem formada disso não duvido, por isso acho que devia fazer um livro das suas "desaventuras" em cima da Bike ...
Parabens Amigo,não o conheço mas espero um dia poder dar-lhe um abraço, agora pouco ando de bike , mas continue a deliciar-me com as suas crónicas ,Eu ao ler
essas mesmas crónicas parece que estou a viajar com o Amigo, se é assim que lhe posso chamar.
violabike
 

KoTaM

Member
....Este "Solitário" deve fazer roer de inveja o verdadeiro El Solitário, que está algures num cárcere castelhano, sem possibilidade ( acho eu ) de ler esta magnífica crónica e mesmo aqueles que não sabem ler, poderão sempre imaginá-la ao ver as não menos inspiradas fotos do Marão; Dá vontade de ir logo a correr devorar um livro do grande Miguel Torga e depois de lenta " digestão " pegar na bike e ir pró monte.
Obrigado pela partilha
KoTaM
 
Bela crónica, bela viagem. A serra terá sido inspiradora, mas a inspiração apenas aproveita a quem tem talento. Parabéns pelo relato e boas "promessas".
 

GS67

Member
El Solitário, as tuas cronicas sao do best ,texto muito bem conseguido acompanhado de fotos deslumbrantes...Portugal é lindo.
 
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