Na encosta do Castelo de Monforte

psardo

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Apenas 36 horas antes de partir abri a janela quase a dormir e não vi nem uma estrela. O ruído das luzes projectava-se a milhares de quilómetros e vedava ao olhos o prazer de contemplar tantas estrelas, não tantas quantas as que existem, mas ainda assim tantas que não consigo contar. Apenas 12 horas antes de partir bastou espreitar pela janela para as tentar contar, uma a uma, como se lhes conseguisse tocar, até adormecer.

24 horas antes de partir dois ou três, ou seriam quatro, ou muitos, condutores apressados abriram ruidosamente a porta do sono que dormia e fecharam-na bruscamente à minha passagem. Acordei e fechei novamente os olhos à procura da porta, agora inexistente. 1 hora antes da partir dois papa figos, pelo menos julguei que eram papa figos, e também julguei que eram dois, escoltaram-me de perto, muito perto, com melodias, lindas, até à porta do sono que dormia. Acordei e a porta ainda estava aberta, abri os olhos e olhei enquanto desaparecia suavemente ao som da mesma melodia, linda.

Comi, como sempre como, bebi um copo de sumo, como quase nunca bebo porque quase nunca vou pegar nela e partir. O leite cai-me sempre mal e costuma revoltar-se logo na primeira subida. Nos dias em que pego nela, tão poucos, quase nunca, bebo sumo, como quase nunca bebo.

Estavam 6 graus em Aguas Frias, onde a minha mãe nasceu há tantos anos, e a mãe da minha mãe há tantos mais, e a mãe da mãe da minha mãe há muitos mais, quando não havia bicicletas, nem carros, nem estradas, e Águas Frias era tão longe.

Passei ali os meus verões todos entre os seis ou sete anos e os dezasseis ou dezassete, três meses inteiros entre o fim da escola e o início da escola, e ali fui crescendo um bocadinho todos os anos. E ali tenho voltado todos os anos, sempre que posso, mas sempre menos tempo, sempre muito menos dias e muito menos noites, muito menos correrias pelos lameiros, a pé ou a cavalo, às descaradas ou às escondidas, muito menos.

Mas sempre que posso volto, e 36 horas antes de partir já imaginava as estrelas e os papa figos. Desta vez levei-a comigo, queria arejar, fugir do ruído das luzes e dos condutores apressados, inspirar fundo, muito fundo, expirar, sorrir imenso, olhar o céu, cheirar o frio, o estrume, a lenha a queimar, os campos verdes, a barragem, a terra, a geada, os castanheiros, as silvas, as gentes, as casas, as batatas, os enchidos ao fumeiro, a adega do meu avô.

Estavam 6 graus quando parei para tirar a primeira foto, passado já o cemitério onde dorme eternamente a mãe da mãe da minha mãe.

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Ia mais ou menos com uma rota traçada, ainda que sem destino, sem pressa de voltar, apenas pelo prazer de ir e depois voltar, era a primeira vez que a levava a ela, ou que era ela a levar-me a mim, ali, não tão longe como há muito tempo era, mas onde ainda mandam os que lá estão, tal como há muito tempo, para lá do Marão.

Ia para Oeste até à mornegra, ia espreitar o cemitério dos bagos que espremi meses antes até darem o néctar que ia provar pela primeira vez poucas horas depois.

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Depois subia para a barragem, contemplava aquele absoluto silêncio e continuava, agora para Noroeste, sempre a subir, até Curral de Vacas.

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Em Curral de Vacas virava para Norte a caminho de Espanha. O que não sabia é que ia parar para contemplar este castanheiro, provavelmente tão antigo como a mãe da minha mãe, e para o guardar para sempre na minha memória.

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Tal como imaginei, cheguei ao cruzamento para Paradela e Casas de Monforte, e virei para Nordeste.

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Enquanto descia pelo alcatrão mal tratado e sentia na cara a brisa gelada com tanto agrado quanto uma criança sente o chupa-chupa a desfazer-se lentamente na boca, pensava porque raio a placa que indicava uma das últimas fugas antes de rumar a Espanha estava tão esburacada. Teria lá pousado uma perdiz, ou foi simplesmente um tiro em cheio no descarregar da frustração de um caçador, ou dois, ou três, que nesse dia não viram uma única perdiz, uma única lebre, como quase todos os dias não vêm já há tanto tempo?

Em Paradela ia agradecer à Nossa Senhora da Boa Viagem Aguas Frias já não ser tão longe e ia seguir quase até Casas de Monforte.

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Imaginei que as ia ver pelo caminho, mas não sabia antes de partir que era ali, naquele lameiro, com Paradela em pano de fundo. Parei para as observar.

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Depois, já apontado a Sul, sai novamente do alcatrão mal tratado, de ao pé das casas e das gentes e do fumo das lareiras e do latido dos cachorros e perdi-me um pouco pelos montes, para trás e para a frente, sempre a tentar um caminho novo, um atalho, um rigueiro, qualquer coisa onde coubessemos os dois. Pelo meio guardei um trilho muito pouco utilizado, mesmo muito pouco, e procurei de novo o rumo ao Sul...

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... a caminho do Castelo de Monforte, que em tempos avistou as tropas de Napoleão, primeiro a vir, depois a ir. Foi ali que D. Dinis o quis, e ali o construi, dos sete que fez, o mais forte, o de Monforte!

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Mesmo antes de chegar, para recordar a beleza daquele sítio e guardar a vontade de voltar, de voltar a pedalar.

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E finalmente iria regressar, passando novamente o cemitério, pela estrada da Igreja, onde três dias depois iria assistir à missa, a última, do padre que tantos anos antes casou os meus pais e me batizou. Mas quando imaginei o meu percurso e imaginei que ali ia passar não o sabia. Nem quando lá passei.

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E no fim , mesmo antes de chegar, mesmo por baixo do Castelo... Aguas Frias, a "minha" Aldeia.

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Comi e bebi como quase nunca como e bebo, as coisas que as nossas próprias mãos fizeram. E assim foi e assim será se Deus quiser quando lá voltar.

Pedro Sardo
 

penatabua

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Ola Psardo, bela crónica :clap: :clap:, imagino :!: :!: :!: Bem sentida, fazendo-me lembrar, as minhas Férias de Verão, em Salvaterra do Extremo, a mesma saudade e gosto pelas origens e claro por estas belezas, ainda originais.
Abraço de penatabua
 

santos46

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sinceramente excelente :mrgreen: o conjunto fotos / contador de estórias é lindo!!!
não tens um blog com mais relatos destes?! :roll:...se não tens pensa nisso! Parabéns e sitio lindo , com o teu relato e a ver as fotos transmite uma calma...... :clap:
 

psardo

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Foi só um desabafo pessoal, uma paixão pela terra, uma paixão pelos momentos em que ando de bicicleta, sozinho ou acompanhado, que infelizmente não se repetem dia após dia porque como tantos sou escravo do dinheiro que ganho a trabalhar tantas horas, demasiadas horas :wtf:. Estou mortinho por lá voltar, afinal ficaram as linguiças e os salpicões por provar. É que no dia seguinte àquela voltinha mágica o que andei a fazer foi, literalmente, atar e por ao fumeiro...

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Tenho vários tracks da região, incluindo o desta voltinha que aproveitei para gravar. A maratona do presunto de 2005, por exemplo, passou em Águas Frias, Paradela, Casas, entre tantas outras que conhço mas que desta vez não trilhei. Afinal a maratona do presunto foram 90 km.

Penso que há por aqui um local próprio para partilhar tracks de gps, vou lá colocar os que tenho.

Abraço,
Sardo
 

Sérgio Favaios

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Pedro,
Este relato está pura e simplesmente fantástico!
De facto, aqui por Trás-os-Montes há paisagens, sentimentos e momentos que a natureza e o btt nos proporcionam que valem a pena!
Abraço e boas pedaladas!
:D
 

penatabua

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Olá Psardo, para além do jeito para as palavras, tb tens jeito para nos abrir "L´APETIT", belo fumeiro :yeah: :cheers: :drool: :drool: :clap:.
Abraço de penatabua
 

coelhone

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Muito a frente Homem.
Grande sentimentos das origens, é assim mesmo.
Mas aquele fumeiro uiui, só faltava a codea de broa e bela malga de tinto.
Boas continuações.
Assim se vive em Portugal, menos mal
 
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